“Esta é a maior crise humanitária do planeta”, conforme declarou a chefe da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), Samantha Power, a repórteres no último mês. O total de mortos no conflito é um número incerto, dada a dificuldade de observadores internacionais o acompanharem de perto, mas a ONU estima que no mínimo 15 mil pessoas perderam a vida na guerra — o número, contudo, pode ser expressivamente maior. O cenário forçou que 10 milhões de pessoas deixassem suas casas, seja internamente ou para outros países — quase 3 milhões de sudaneses conseguiram atravessar a fronteira até agora.
Esta é uma “guerra esquecida” pela comunidade internacional, que não emprega os mesmos esforços adotados nos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Em abril deste ano, quando a guerra completou um ano, doadores internacionais levantaram US$ 2 bilhões para ajudar os sudaneses. Comparativamente, só os EUA enviaram o equivalente a US$ 6,5 bilhões a Israel em esforços de guerra. “Frequentemente, refere-se ao Sudão como uma crise esquecida. Mas a questão é quantas pessoas sequer sabiam sobre ela para poder esquecê-la”, pontuou o chefe do Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha, na sigla em inglês) da ONU, Justin Brady, em entrevista à agências de notícias da organização.
A guerra começou em abril de 2023, movida pela divergência entre o líder da Forças Armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês) paramilitares, Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti. Eles foram aliados como representantes de um movimento que depôs o presidente Omar al-Bashir, cujo regime durou 30 anos. Desde então, o país, que já vivia uma crise humanitária devido à instabilidade econômica e política, mergulhou em um caos mais profundo.
Um ângulo ainda mais cruel do conflito é a fome. O Sudão está na porção centro-norte do continente africano, próximo ao Oriente Médio, logo abaixo do Egito e banhado pelo Mar Vermelho, que o separa da Arábia Saudita. O país tem quase 47 milhões de habitantes, e hoje mais da metade deles está em perigo de enfrentar insegurança alimentar grave, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Entre eles, 755 mil estão incluídos na faixa mais extrema da fome.
O conflito também estraçalha a vida de mulheres. Nos primeiros meses da guerra, registrou-se uma onda de estupros em massa no país, que agora resultaram em partos forçados em que as mães não têm forças sequer para amamentar os bebês. Em entrevista à agência de notícias da ONU, a chefe de operações de campo da organização no Sudão, Jill Lawler, contou a história de uma criança “sortuda o bastante” que conseguiu tratamento médico, diferentemente da maioria. “Uma mãe não conseguiu prover leite ao seu filho de três meses, então recorreu a leite de cabra, que levou a um caso de diarreia” — o quadro, quando sem tratamento adequado, é a terceira causa de morte de crianças abaixo de cinco anos no mundo.
Como ocorre na Faixa de Gaza e na Ucrânia, a ajuda humanitária encontra dificuldade para entrar no país. Antes mesmo do conflito, o histórico econômico e político instável já levava quase 16 milhões de pessoas a necessitar de ajuda, e a guerra elevou a situação a níveis extremos, especialmente na capital do Sudão, Cartum, que até estava relativamente livre da violência dos conflitos.
O que causou a guerra no Sudão?
No centro da guerra do Sudão, está uma disputa por poder de forças ex-aliadas. Em 2019, militares deram um golpe de estado para depor o presidente autoritário Omar al-Bashir, após fortes manifestações. Dois anos depois, o então primeiro-ministro interino também foi derrubado e, desde então, o Sudão é governado por uma junta de generais.
Em meio a essa instabilidade, dois dos principais generais da junta, que até então lideravam em aliança, passaram a divergir sobre os rumos do país e a disputar o controle do governo — o líder da Forças Armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês) paramilitares, Mohamed Hamdan Dagalo, ou Hemedti.
Um dos maiores pontos de discordância entre eles é a inclusão das RSF nas forças militares oficiais do país, o que Hemedti apoia. Agora, justamente essas duas forças aterrorizam os sudaneses em uma escalada de violência.
As RSF surgiram em outro conflito que assombra a história do Sudão. Elas foram fundadas no começo dos anos 2000 — então, com o nome Janjaweed — pelo próprio presidente deposto em 2019 como resposta a uma rebelião em Darfur, no oeste do país. O período é analisado por alguns analistas como um genocídio, isto é, o extermínio intencional de uma etnia ou de um povo. O governo sudanense, contudo, sempre negou as acusações e atribuiu as milhares de mortes na região a um “conflito tribal”.
Hoje, novamente há indícios de um genocídio na região, segundo a organização pelos direitos humanos Human Rights Watch (HRW). A “BBC” internacional ouviu vítimas do conflito que afirmam as RSF têm utilizado xingamentos raciais e étnicos durante os ataques a grupos não árabes, que culminam em dezenas de mortes.
O Brasil na guerra do Sudão
O Itamaraty se pronunciou sobre a guerra do Sudão já no primeiro dia do conflito, em abril de 2023. Naquele mesmo dia, o Itamaraty divulgou uma nota em que disse acompanhar o conflito com preocupação. Neste ano, os ministros de Relações Exteriores dos Brics, que incluem o Brasil, emitiram um comunicado em que clamam pela paz no país. “Os ministros reiteraram seu apelo por um cessar-fogo imediato e incondicional e pela resolução pacífica do conflito no Sudão e o acesso irrestrito da população sudanesa à assistência humanitária e a ampliação da assistência humanitária ao Sudão e estados vizinhos”, diz o texto.
O presidente Lula (PT) endereçou o tema em seu discurso no Dia da África em maio, chamando atenção à gravidade do conflito: “No momento em que as atenções se concentram na Ucrânia e em Gaza, não podemos deixar que o mundo se esqueça do Haiti, nem de outras tragédias humanitárias como a do Sudão”. A reportagem questionou o Itamaraty sobre planos de ações humanitárias do Brasil na região e aguarda retorno.