Audiência pública reúne nesta quinta (26) médicos, pesquisadores e especialistas no assunto; dificuldades para se estudar a planta também serão debatidas
Benício, de 16 anos, sofreu desde os primeiros dias de vida com epilepsias causadas pela chamada síndrome de Dravet. Em tratamento desde 2014, hoje o garoto consegue ficar meses sem ter crises e retirou todos os 25 medicamentos que tomava para a condição. Ângela passou a sofrer com insônias constantes, dependendo de medicamentos para conseguir fechar os olhos todas as noites, após perder o marido para a Covid-19, no início da pandemia, em 2020. Passados quatro anos, ela já não precisa mais do antidepressivo e, agora, reduz as doses do poderoso sedativo Zolpidem. A melhoria nas condições de saúde de ambos, embora muito distintas, passam pelo mesmo remédio: a maconha.
O uso medicinal da cannabis (nome científico da planta), será tema de uma audiência pública, nesta quinta-feira (26 de setembro), na Assembléia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). Os deputados mineiros contarão com a presença de dezenas de especialistas, pesquisadores e professores para debater, entre outras coisas, as necessidades e dificuldades do acesso à planta por pacientes como Benício e Ângela.
Entre as autoridades presentes na audiência está o psicólogo e socioanalista Augusto Vitale Marino, que presidiu o Instituto de Regulamentação e Controle de Cannabis no Uruguai, país que já regulamentou o uso da cannabis, inclusive para uso recreativo.
“Em um país tão grande e diverso como o Brasil, vejo com muita alegria que, apesar de não existir uma lei geral para a cannabis medicinal, foi possível avançar em cada estado de forma diferente, melhorando as normas que permitem o acesso dos pacientes ao tratamento. Vi com muita alegria a experiência aqui de Belo Horizonte, em uma associação de pacientes. Mas, todavia, o direito de acesso ao medicamento ainda não está sendo respeitado e, por isso, é preciso seguir lutando e avançando nesse quesito”, disse o especialista uruguaio a O TEMPO.
O médico Leandro Ramires é pai do Benício e um dos fundadores da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal (AMA+ME), entidade citada pelo uruguaio. A associação foi a primeira do tipo no Brasil, fundada ainda em 2014, mesmo ano em que foi concedida a primeira autorização para importação de medicamentos à base de maconha. Hoje coordenador médico-científico da entidade que ajudou a fundar, Leandro e os outros trabalhadores da associação não ajudam mais somente o seu filho, mas outros 2.800 pacientes que estão espalhados por todo o Brasil.
Sem fins lucrativos, a AMA+ME está localizada no Barro Preto, um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte, mas, 10 anos depois, ainda luta para ter a autorização para cultivar a maconha usada para produzir os seus óleos. “Para atender os nossos associados, a gente precisa fazer a extração do óleo das flores de pacientes que já possuem o salvo-conduto da Justiça para plantar legalmente. Nossa ação já está no Supremo Tribunal Federal (STF), mas, como somos a primeira associação que ‘bateu’ na Justiça, a gente recebeu todos os ‘nãos’ que podiam nos dar. Outras associações, que surgiram depois, já têm o direito a cultivar no Brasil”, completa o médico.
A dificuldade na autorização para produção do remédio e, também, para se desenvolver pesquisas científicas sobre o seu uso terapêutico, devido à ausência de uma regulamentação, será um dos pontos abordados na audiência pública desta quinta. Entre os participantes confirmados estão a pró-reitora adjunta de pesquisa da UFMG, Jacqueline Takahashi, e o mestre em psicologia pela UFMG e membro do Conselho Regional de Psicologia (CRP/MG), Anderson Matos. A audiência foi solicitada pela deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT).
A audiência pública está marcada para começar às 10h, no Auditório José Alencar, e terá transmissão ao vivo pela ALMG. Para assistir, clique aqui.
No início, médico optou pela ilegalidade
Apesar de já existir a possibilidade jurídica em 2014, ciente da demora do processo e ansioso para ver a melhora do filho, o médico Leandro Ramires recorreu ao tráfico de drogas para medicar o filho. Para isso, ele contava com um amigo que enviava, dos EUA, doses de maconha medicinal escondidas em brinquedos e outros objetos.
“Até os cinco anos ele (Benício) tinha se internado 48 vezes, 14 delas em UTI Neonatal. Ele tomava 25 comprimidos por dia. Como médico, eu já tinha estudado sobre a maconha e tinha segurança no medicamento, já sabia que ninguém morre de overdose dessa planta. Então, foi assim que eu tratei meu filho no início, antes mesmo de brigar na Justiça, eu optei pelo tráfico de drogas”, lembra o médico.
O resultado veio logo na primeira dose do óleo importado clandestinamente. “Foi a primeira vez que ele conseguiu dormir uma noite inteira e, a partir de então, ele nunca mais internou. Saiu de 20, 30 crises convulsivas por dia para cerca de uma por semana. Hoje chega a ficar até 3 meses sem crise”, conta Leandro. No canal do YouTube do médico, ainda é possível encontrar vídeos que mostram o efeito praticamente instantâneo do medicamento à base de maconha nas epilepsias no garoto.
Assista:
“Acalma os meus pensamentos”, diz paciente
Casada com um pastor, Ângela Soares Perdigão Antonioni, de 40 anos, viu o seu mundo “virar de cabeça para baixo” em 2020, com a morte do jovem companheiro, que não resistiu às complicações do coronavírus quando ainda tinha 34 anos. Até então completamente distante da maconha, sem conseguir dormir e com dificuldades para enfrentar o luto, ela foi apresentada à AMA+ME pela irmã gêmea, que já conhecia a presidente da associação, Juliana Ceolin.
“A maconha me deu um norte em todos os sentidos. Voltei a trabalhar por causa dela, voltei a ter qualidade de vida, porque eu não dormia desde que o meu marido morreu. Minha cabeça ficava em estado de alerta, o tempo inteiro, assustada, com medo. Depois de quatro meses assim, eu passei a usar o THC para controlar a questão do sono. Mas me ajudou também na questão da ansiedade, da depressão. Foi um divisor de águas, pois ela (maconha) acalma os meus pensamentos, me ajuda a pensar com calma, me relaxa, me ajuda a dormir e, ainda, melhorou a minha fome”, conta.
Após quatro anos de tratamento, Ângela agora trabalha como acolhedora na AMA+ME, atuando diretamente com os pacientes. Segundo ela, ainda existe muito preconceito contra a planta, porém, aos poucos, isso está mudando. “Acabei de atender uma freira, irmã de caridade, de 87 anos. Ela teve acesso a esse tratamento por uma amiga. Eu até perguntei se a madre-superiora não tinha sido contra, mas ela disse que não, pois sabia que é um tratamento, que é natural. Então, acho que o boca a boca é a principal arma para esse tratamento chegar a cada vez mais pessoas”, diz, esperançosa, Ângela.
Como funciona
O médico Leandro Ramires explica que a maconha medicinal, hoje, já tem sua atuação comprovada para uma série de condições médicas. “A cannabis recebe todas as ‘pedradas’, mas, a estrela disso tudo é o chamado sistema endocanabinóide, que é um sistema biológico que está no corpo de todas as pessoas. Os componentes químicos dessa planta só simulam estes componentes endógenos e agem em busca de um equilíbrio do corpo”, explica o coordenador médico-científico da AMA-ME.
“A maconha regula o sistema nervoso que, por algum motivo, está funcionando de maneira indevida. Por isso serve para crises convulsivas e outras doenças degenerativas, como Parkinson, Alzheimer e demência. Mas ela (cannabis) também tem atuação no sistema imunológico, sendo indicada para doenças como retocolite ulcerativa, artrite reumatóide, psoríase, doença de Crohn e inúmeras outras que afetam a imunidade”, continua o médico.
Os medicamentos à base de maconha também são receitados para pessoas em tratamento de câncer (no aumento do apetite), dor neuropática, ansiedade, insônia, depressão, inflamações, doenças reumáticas, autismo, glaucoma, esclerose múltipla e fibromialgia, entre outras.