Os últimos dias trouxeram uma despedida marcante ao Hospital Márcio Cunha (HMC). A médica pediatra, Dra. Vera Lúcia Venâncio Gaspar, após 52 anos de dedicação ininterrupta, encerrou seu ciclo de trabalho, deixando um legado de ética, profissionalismo e amor à medicina. Primeira pediatra a integrar a equipe do HMC, Dra. Vera se tornou referência na Pediatria, com atuações fundamentais na Unidade Intermediária Neonatal, UTI Neonatal e Pediátrica, destacando-se pela prevenção de infecções hospitalares e incentivo ao aleitamento materno.
Em uma carta emocionada, Dra. Vera agradeceu à comunidade, colegas, amigos e pacientes. “Encantei-me com o Hospital à primeira vista… Tinha acabado de fazer residência e obtido o título de especialista em Pediatria, quando conheci o Hospital. Agora, idosa, com coragem, comovida e já com saudades, encerro minhas atividades nesta honrada instituição”, trecho da carta.
A Fundação São Francisco Xavier, que celebra essa trajetória de excelência há 55 anos, deseja à Dra. Vera um futuro repleto de novas realizações e gratidão por tudo o que ela contribuiu ao longo dessas décadas. A despedida carrega admiração e respeito por sua marcante contribuição, visível na história do hospital e nas vidas que transformou.
Confira abaixo a carta na íntegra:
Carta à Comunidade do Hospital Márcio Cunha
Em 3 de janeiro de 1972, iniciei minha trajetória profissional neste Hospital. Gratidão ao Márcio Cunha, que me acolheu, jovem ainda, e onde permaneci durante 52 anos, 9 meses e 20 dias.
Naquele ano, o Hospital tinha apenas 6 anos e, apesar da pouca idade, tinha um firme ideal, sustentado em sólidos pilares. Já era conhecido na cidade e tinha seu trabalho reconhecido. Encantei-me com o Hospital à primeira vista. Identifiquei-me com sua organização, seus recursos e seu propósito de oferecer uma assistência de qualidade à população. Esse sentimento foi se consolidando e se fortificando a cada ano.
Tinha acabado de fazer residência e obtido o título de especialista em Pediatria, quando conheci o Hospital. Jovem, sonhando em exercer a profissão, iniciei o meu trabalho. Agora, idosa, com coragem, comovida e já com saudades, encerro minhas atividades nesta honrada instituição.
Cheguei trazendo, na bagagem, projetos e sonhos. Criança, já havia escolhido minha profissão: queria ser médica. Por ocasião da formatura, meus colegas e eu, fizemos o Juramento de Hipócrates. Procurei, ao longo de todo esse tempo, cumprir aquela profissão de fé: usar todo o conhecimento e empenho para “prevenir a doença; curar o doente; aliviar a dor”.
O cuidado diário com as crianças enfermas logo me permitiu compreender, com muita clareza, que a puericultura é uma forma de proteger a vida. É a atuação preventiva de inúmeros agravos que podem acometer a criança e ao adolescente.
Estou certa de que, mesmo com todo avanço e todo conhecimento, o nosso olhar precisa continuar voltado para a humanização da prática médica, alicerçada na compaixão, no altruísmo, na empatia, na dedicação. O avanço tecnológico na medicina é indispensável, todavia não substitui o olhar atento que sonda a alma, o gesto carinhoso que minimiza a solidão, a palavra sábia que exorciza o medo e desperta o ânimo.
Até hoje, mora, ainda, dentro de mim, a recém-chegada, coração acelerado, emocionada com o primeiro trabalho, empenhada em concretizar o ideal e, que vê, agora, chegar o momento da partida.
Quero saudar meus colegas de trabalho e amigos, com cuja colaboração sempre contei. Companheiros de jornada, repartimos o sonho e a responsabilidade. Sei que, para se tornar realidade, o sonho precisa ser abraçado por todos. Agradeço à Fundação São Francisco Xavier por ter me aberto as portas, ter me proporcionado oportunidade de trabalho e de realização de tantos projetos.
Reconheço que, se tenho a honra e a alegria de fazer parte do quadro clínico do Hospital Márcio Cunha, há mais de cinco décadas, é porque, ao longo desses anos, tenho contado com a confiança e o apoio da Direção. E, por isso, quero agradecer ao Diretor, Dr. Alexandre Silva Pinto, em nome do qual manifesto minha gratidão aos que o precederam na árdua tarefa de viabilizar, com excelência, o funcionamento do hospital.
Sou grata ao apoio e à colaboração dos colegas Pediatras e dos colegas das várias outras Especialidades que me auxiliaram a conduzir o tratamento de muitos pacientes, com disponibilidade e competência.
Sou grata às Pessoas da Áreas Assistencial e às da Área Administrativa. Vocês fazem diferença: competentes, comprometidos, disponíveis, atentos.
Sou grata aos residentes. Ensinar, ofício prazeroso; atividade estimulante, envolvente e estímulo ao estudo.
Sou grata aos pacientes e suas famílias, razão maior da existência do Hospital, e propósito maior do nosso ofício. Vocês confiaram em nosso trabalho e em nosso conhecimento, levando-nos, cada vez mais, a estudar e buscar solução para tantos desafios. Os pacientes são parte fundamental da alegria que carrego.
Agradeço aos demais valiosos e queridos amigos que não foram nomeados, mas que, com presença amorosa, caminham comigo.
História tecida a muitas mãos, construída pela soma de muitos sonhos e empenho de muita gente. Raízes sólidas, mas flexíveis, dispostas a buscar, continuamente, seiva nova. Troncos resistentes, e, como os ipês, a doar suas flores a cada ano.
Chegou o momento da despedida. Despeço- me, mas vocês vão junto comigo, estão no meu coração. Como em um filme, cenas de nossa convivência vão passando: o que está gravado na memória fica para sempre!
Em 1990, foi lançado o filme Cinema Paradiso. A história, ambientada em uma pequena cidade da Sicília, celebra a amizade de um menino, Toto, e seu velho amigo projecionista, o Sr. Alfredo. Há uma cena em que o amigo já idoso, reconhecendo o talento do jovem e seu ideal de partir para a cidade grande para estudar cinema, ao se despedir, o aconselha: “Vai e não olha para trás”.
Segui a sugestão e, por isso, despeço-me de vocês sem olhar para trás. Foi para ficar menos difícil. Sei que vão compreender.
Já estou indo, procurando, nesse céu azul de Ipatinga, a claridade, fonte de esperança e prenúncio de vida.
Obrigada.
Vera Gaspar