22/11/2024
21:47

Mesmo em guerra, Rússia vira destino para brasileiros que querem estudar medicina

Mesmo em guerra, Rússia vira destino para brasileiros que querem estudar medicina

Hoje médicos no SUS, brasileiros buscaram a Rússia para se formar em medicina e fugir do alto custo de faculdades particulares no Brasil. Eles viajam 11 mil quilômetros para chegar ao outro lado do mundo, onde atuam em hospitais do período soviético e convivem com sensação térmica que chega a – 40 °C.

Neste ano, houve recorde de médicos formados na Rússia inscritos no Revalida (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos), com 164. Em 2014, eram 34 candidatos, o que significa um aumento de 382% em dez anos. Ao todo, na última década, 900 profissionais com diploma russo se inscreveram na prova.

A taxa de aprovação dos graduados no país é de 31%. Os dados são do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), responsável pelo Revalida. Após formados, grande parte dos brasileiros encontra dificuldade em continuar no país. Por isso, decidem retornar.

No Brasil, muitos trabalham no Mais Médicos enquanto não revalidam o diploma. No programa, 117 dos profissionais se formaram na Rússia, de acordo com o Ministério da Saúde.
Para eles, o SUS sai na frente do sistema público da Rússia na atenção primária e em aspectos como esterilização e higiene. Dizem que, por outro lado, que hospitais russos têm melhor estrutura e mais leitos de internação.

A médica Bárbara Parente, 30, morou e estudou em Kursk, cidade a 530 km de Moscou e a 120 km da Ucrânia – a guerra entre Kiev e Moscou é um dos motivos que tem levado os brasileiros a desistirem de ficar no país após o fim da faculdade.

Em 23 de fevereiro de 2022, Bárbara viu uma fileira de tanques marchando em direção à fronteira com a Ucrânia durante uma viagem. No dia seguinte, teve início a invasão russa ao país vizinho.

“Disseram que era uma operação militar normal, então fui para casa e dormi. De madrugada, minha mãe ligou falando que tinha começado a guerra. Fiquei em choque”, diz. Ela afirma que, com as sanções de outros países à Rússia, viver lá se tornou insustentável. O custo de vida aumentou e parte do comércio, sobretudo lojas estrangeiras, fechou. Seis meses após o início da guerra, quando se formou, Bárbara voltou ao Brasil.

Natural de Tocantins, ela quis estudar no exterior depois de não passar no vestibular para universidades públicas no Brasil. A Universidade Médica Estadual de Kursk tinha mensalidade menor do que a de uma particular brasileira: ela pagava US$ 3.100 por semestre, ou R$ 11,7 mil na cotação de 2015, quando se mudou.
Além disso, viver na Rússia daria mais chances de permanecer na Europa, segundo Bárbara. Ela pretendia continuar morando lá, mas o início do conflito com a Ucrânia a dissuadiu.

As aulas da faculdade eram em inglês, mas os alunos também estudavam russo para viver no país e atender pacientes. Lá, Bárbara trabalhou em hospitais que permanecem com uma estrutura antiga, da Segunda Guerra – inclusive com bunkers.

“Eles mantém até a hierarquia da época, com médicos soviéticos que, quando chegam, pedem para batermos continência.”
Hoje, ela atua na zona rural de Manaus pelo programa Mais Médicos. Bárbara diz que a Rússia tem mais hospitais públicos especializados, e pacientes esperam menos para conseguir cirurgias. O SUS ganha na atenção preventiva, em aspectos como visita domiciliar e fornecimento de remédios para doenças crônicas.

Vitória Haefle, 27, compartilha a opinião. Formada na mesma universidade que Bárbara, ela trabalha em uma clínica da família no Rio de Janeiro pelo Mais Médicos. “Atenção primária do Brasil funciona muito bem e é um exemplo para o exterior”, diz Vitória. “Mas, lá, existem mais hospitais e leitos. Nunca vi pessoas internadas no corredor, coisa que já vi aqui.”

Ambas chegaram a Kursk pela Aliança Russa, uma agência que leva alunos brasileiros para estudarem medicina no país. Procurada, a agência não respondeu. Para Vitória, estudar na Rússia era a chance de ter uma experiência diferente, além de uma oportunidade de viver na Europa. Prestou vestibular em inglês para a universidade de Kursk, que cobrava principalmente conteúdo de ciências biológicas. Quando chegou ao país, não era fluente no inglês, mas foi avançando de nível ao longo dos semestres.

Gaúcha, Vitória diz que sentiu mais frio no Rio Grande do Sul do que em Kursk, por causa da estrutura robusta de aquecimento na Rússia. Tanto que, depois de se formar, participou da tradição do “banho russo”, de origem ortodoxa: é feito um buraco no gelo, onde pessoas mergulham usando roupas de banho em uma água com temperaturas a -15°C.

Lá, o custo de vida era semelhante ao de uma cidade pequena no Brasil, de acordo com a médica. Mas a comida era mais em conta e produtos industrializados, como leite e queijo, tinham qualidade superior. A carne tinha preço elevado, então a base da alimentação eram tubérculos como batata, beterraba e cenoura.

Para ela, o maior choque cultural foi a personalidade dos russos, que são mais fechados. Vitória, assim como outros brasileiros na Rússia, fez mais amizade com conterrâneos e estrangeiros do que com os nativos.

Além disso, ela cita ainda a violência contra a população LGBTQIA+ e contra mulheres como questões que existem no país. Lucas Corbo, 28, se assumiu gay enquanto morava e estudava em Kursk. Segundo ele, lá existem muitas pessoas LGBTQIA+, tanto russos quanto estrangeiros, mas que limitam a própria liberdade por receio de serem vítimas de homofobia.
“Sempre tivemos muito cuidado com isso. Já tive amigos que apanharam em festas e foram perseguidos na rua”, afirma. “No Brasil, temos uma segurança legal, já que homofobia é crime. Lá, isso não existe.”

O presidente russo, Vladimir Putin, já fez ataques à diversidade sexual e, em março, incluiu o movimento internacional LGBTQIA+ na lista de terroristas. A maior parte dos brasileiros tinha dificuldade em lidar com nativos, de acordo com ele. Lucas diz que, no hospital onde atuava, pacientes tinham atitudes xenofóbicas, sobretudo com alunos de medicina indianos, árabes e vindos de países da África. Brasileiros eram os imigrantes que menos sofriam, afirma ele, já que a maioria era branca.

Por esses motivos, continuar na Rússia não era uma opção para o médico. Depois de formado, ele voltou ao Brasil, onde revalidou o diploma. Hoje, trabalha em um hospital municipal do Rio de Janeiro.

Uma das diferenças mais marcantes para Lucas foram os métodos de higiene na rede pública. Na Rússia, médicos usavam toucas e luvas de tecido, que são esterilizadas para reúso, enquanto no SUS os utensílios são descartáveis. Além disso, nas salas de cirurgia russas, as janelas ficam abertas porque, para eles, a circulação do ar evita bactérias.

“No SUS, mesmo com poucos recursos, eles mantêm as técnicas de higiene e esterilidade. Onde trabalhei, tudo sempre foi bem organizado e fiscalizado.” (LUANY GALDEANO/FOLHAPRESS)

 

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